Isso de se doar, doar parte do
próprio corpo na tentativa de ajudar a outrem, em definitivo, não é fácil. Não
digo que é necessário ser “Digimon
evoluído” para tanto. Não se trata disso. Apesar de não servir como regra,
procuro pensar em doação, generosidade, entrega, como uma necessidade pessoal.
É a porção que me completa, compensa minha pequenez e, o mais importante, me
aproxima de Deus.
Passei ontem a noite por um
procedimento de coleta de células-tronco da medula óssea. Após cinco dias de
estimulação com três injeções diárias de um estimulante da proliferação dessas
células, ontem, enfim, deu-se a coleta. O procedimento, apesar de seguro, tem
seus desconfortos. Ver por cinco horas meu sangue saindo pelo braço direito,
circular em uma maquina barulhenta instalada ao lado de meu leito e, só então,
retornar pelo braço esquerdo, não foi algo exatamente agradável de presenciar.
A imobilidade dos braços exigida
durante todo o procedimento os deixou doloridos até agora. Juntem-se a isso as náuseas
que me levaram a êmese no meio da coleta e os efeitos colaterais dos
anticoagulantes utilizados. Por diversas vezes quis pedir que interrompessem. A
força e apoio da equipe de enfermagem que me assistia e a imagem, mesmo que
imaginada, do futuro receptor, não me permitiram tanto.
Durante as horas de coleta, por
vezes me vi em angustia desmedida. Como adjuvantes, as emoções contidas nas
últimas semanas, geradas pela ideia crescente de minha partida próxima, e pelas
despedidas dolorosas das quais não tive como me esquivar recentemente. O frio e
a penumbra daquele quarto completavam o cenário. Sentia que, conforme saiam de
mim as células “superpoderosas” que mudariam uma vida, um fluxo de emoções, de
sentimentos bons e ruins, também se formava.
Havia
ali
dor
e amor,
tristeza
e alegria.
Misturadas,
saudade
e solidão.
Juntas
ao medo,
desafiavam
minha
valentia.
Restavam-me,
então,
as
lágrimas.
Era como se a vasão física
impulsionada por uma maquina estimulasse meu espírito a se derramar. Impossível
conter as lágrimas... Estava, então, eu, trêmulo de frio, de braços abertos e
rosto molhado. A angustia, aos poucos, começou a dar lugar a paz.
Enfim, concluí a coleta. Que
sensação mais estranha! Não saberia descrever, a não ser por meio de uma
analogia. Estava eu, a meia noite, naquele apartamento de hospital, com o corpo
mastigado, dolorido, um pequeno curativo em cada um dos braços, rosto e pernas
ainda formigando. Sentia como se tivesse parido. Obviamente nunca terei como
saber, de fato, se a sensação é a mesma. Mas, naquele momento, eu era uma mãe,
a qual acabara de dar a luz. Sentia um alívio, como se algo tivesse saído de
mim, mas me tornado maior. Havia paz ali, naquele momento. E a sensação rara de
dever cumprido... Junto a uma enfermeira chamada Vitória (uma daquelas
coincidências nada acidentais), parira uma pequena bolsa de amor, esperança e
vida. Em mim, ficava a certeza de que, doar-me, mesmo em meio a angustia e dor,
me fazia melhor, me tornava mais feliz e certo de que a vida vale sim muito a
pena!