segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ele em busca dela

Amou desde o primeiro instante em que a viu. No começo se acreditava apenas encantado pela beleza que ela trazia. Com os dias, percebeu que era mesmo a perdição de amar, enfim. A ninguém revelou o segredo: coisa sua, não tinha porque falar para mais alguém. Gostava dela em silêncio, na surdina. Assim, era confortável: não tinha de se declarar, não corria o risco de se decepcionar e poderia continuar lhe gostando só no olhar.
Um dia ele começou a querer mais. Não admitiu isso sequer para ele mesmo. Tinha esse dom: quando queria, podia fingir até para si mesmo. E assim o fez, usando o pretexto de que ela precisava de melhores companhias (ele, claro!), se achegou aos poucos, para conhecê-la melhor e tentar armar um modo de conquista-la. Descobriu muitas coisa. Ela adorava dançar, era louca por sorvete e tinha preferência por vermelho-escuro. Usava um perfume de notas cítricas que, ao que lhe parecia, realçava a vida que havia nela. Adorava roupas. Um dia, como que se confessasse para ele, revelou que todas as manhãs, passava quase uma hora decidindo com se vestiria naquele dia. Em outras circunstância, ele lhe diria, sem titubear, que ela era fútil, mas achou aquilo lindo, e adoraria poder assisti-la todos os dias encenar seu dilema matinal.
Tanto ele se dedicou e insistiu, que ela aceitou, a amizade. Ela agora lhe revelava tudo. E o que não deixava claro, ele subentendia. Era muito bom nisso. Passaram a sair juntos, assistir filmes juntos, até cozinhar na casa dela. E conversavam, interminavelmente, mas nunca concordavam, invariavelmente. Era divertido, para ela, estar com ele. Lhe fazia bem, talvez mais feliz. Para ele era a da dose diária de uma droga em que se viciara. Era dependente dela. E só agora começava a perceber.
Ela viajou. Iria passar um mês na casa dos pais. Tormento para ele. Sabia-se dependente, mas não tanto. Pensava nela a cada instante. Empregou toda sua criatividade para manter uma comunicação diária com ela que, como se precisasse daquilo também, lhe correspondia. Naqueles dias, pode conhecê-la melhor do que nunca. Com a distância ela se mostrava por inteiro, falava de seus segredos, medos e incertezas.
Falou, um dia, também de um amor que tivera tempos antes e que, na visita a casa dos pais, reencontrara. Ela disse não saber se ainda gostava do tal amor, mas que tinha saído com ele e umas amigas de escola. Ele a escutou calado. Sempre usara o silêncio como arma a seu favor. Desta vez, sua mudez o denunciava. Titubeou algumas palavras e desligou. Só voltaram a se falar três dias depois. Ela voltaria no dia seguinte, e queria saber se ele poderia ir lhe esperar. Com poucas palavras e sem vontade própria disse sim e desligou. Já não sabia como conversar com ela.
Aqueles foram dias de dor. Antes, remediado pela presença dela, mesmo que ao telefone, suportava o que lhe corroía por dentro. Agora, depois de se perceber um amigo confidente, e apenas isso, não conseguiria suportar tudo aquilo. Estava certo de que ela nunca o amaria. Confundira as regras. Tudo era culpa sua. Ela nunca o engara, eram amigos, apenas. Agora, não era capaz de suportar aquilo tudo. Decidiu, então, afastar-se dela de uma vez. Seria melhor para os dois. Evitaria dor, para ele, e constrangimento, para ela.
Como prometera, foi espera-la no aeroporto. Havia nos olhos dele uma mistura de sentimentos. Estava feliz, por poder revê-la depois de semanas; triste, por saber da proximidade da separação que ele mesmo estabelecera; sentia medo de não saber como recebê-la, depois de tudo. Somente a presença dela, do outro lado da vidraça, acenando, pode lhe tirar da confusão em que mergulhara.
E como estava linda, ela. Empunhando a imensa bagagem que trazia, dirigiu-se para ele e o abraçou. Perdido no perfume dela, ele, mais que antes e como sempre, soube que a amava. Não disse nada do que havia ensaiado por toda noite, nem a beijou, como secretamente havia desejado. Apenas sorriu e disse que estava com saudades. Ele pegou as malas e a levou até em casa. Ela o convidou para entrar, mas ele recusou, disse estar atrasado para um compromisso. Ela não insistiu. Apenas agradeceu, por tudo, o abraçou novamente e pediu que a visitasse logo: tinha muitas coisas para lhe contar. Ele apenas anuiu.
Seguiu para casa. A noite, em vão tentou dormir. A imagem dela, o perfume, o sorriso, tudo estava gravado nele. Não pode simplesmente deixa isso de lado e esperar pelo momento certo, se é que existiria. Teria de fazer algo, e logo, agora. Só não sabia o que, nem como.
O sol acabava de nascer quando ele, por fim, saiu de casa. Já não lhe importava se pareceria ridículo dizer tudo a ela. Talvez ela até já soubesse, mas para ele era a única opção. Teria de acorda-la, surpreende-la ainda sonolenta. Quem sabe isso até não ajudaria. Ela, ao acordar, estaria desarmada e não teria muito como reagir a ponto de lhe decepcionar.
E foi, bravamente, sem nem mesmo saber porque, em busca de um algo menos insuportável que aquele aperto que trazia no peito. Foi em busca de um fim para aquilo tudo, o ponto final que lhe devolvesse a paz perdida desde o dia em que a conhecera. Não esperava um sim, nem imaginava receber um não. Ele buscava apenas sua vida de volta, fosse com ou sem ela ao lado.

Coisas Minhas


Com o tempo aprendi que nem sempre os melhores amigos serão bons colegas de trabalho, que não preciso estar sempre por perto para ser lembrado, que a vida é muito curta para ser desperdiçada com medo, tristeza e solidão e que para ser sincero não preciso ferir ninguém.

Entendi que o silêncio fala mais que qualquer palavra, que a música tem poder de comunicar o indizível e que o olhar tem vontade própria e não sabe mentir. Passei a ter mais fé em Deus, a sonhar mais vezes e mais alto, a sorrir mais (chorar também), mas a me culpar menos. Compreendi que viver não é fácil, que o amor é fundamental e que crescer dói.

Errei várias vezes. Machuquei muitos dos que me amavam. Perdi (ou deixei que se perdesse) quem mais importava. Desfiz os meus trançados mais trabalhosos, abdiquei das conquistas mais valiosas. Fiz da vida um contrassenso, paradoxo desagradável. Evitei a forma definida, brinquei com a imaginação dos que me cercavam. Para muitos fui o bobo, inútil de poucas habilidades. Para outros, maquiavélico, manipulador despreocupado com os meios, orientado pelos fins. Nem sei se alguém me viu de verdade...

Busquei sempre o bem. O espanto é que, tentando, por vezes fiz o mal, fui mau. E, por mais que se queira fazer crer o contrário, perdão é coisa rara, difícil de se dar e, para mim, um martírio receber. Não foram poucas as vezes em que preferir abandonar tudo a ter que pedir desculpa, receber o perdão de quem sangrava por minha culpa. Talvez por orgulho, ou auto-punição, nem bem sei.

Foram poucas as vezes em que permaneci no filme até o final. Não sou paciente a ponto de esperar a última cena acabar. Apenas enceno até o momento em que a vida pode ser salva, enquanto o olhar ainda não pode machucar. Depois que a confiança se perde, que a intimidade é ferida, não há como voltar ao zero e fazer de novo. Quando o cristal é quebrado (e aqui soo brega), o que há a fazer é juntar o indispensável, por tudo em uma pequena mala e partir, sem avisar, sem se despedir, sem ter ao menos destino. Ir, somente por ser esta a única maneira de manter-se digno. Já nem sei quantas vezes fiz isso.

Não defino tal ato como abandono ou fuga. Prefiro “partida”, “recomeço”. Sempre que parti levei comigo muito daqueles com quem convivi. Deixei muito também, mas quase sempre foi insuficiente. Dentre o que trouxe há sempre um jeito de falar, um gesto mais característico, um hobbie que adquiri com quem me abrigava. Ganhei, também, muitas memórias, que as vezes me fazem reviver o tempo bom que vivi antes de um algo se romper. Os perfumes, musicas, as vezes a comida, um filme, um livro, uma palavra, um nome... Há sempre um algo que me faz lembrar a quem um dia tive.

Sei que Deus tem sido bom comigo. Generoso, Ele. Tenho tentado, tortamente, retribuir. Sigo tateando o escuro, buscando orientação em meio as confusões em que me perco. O que aprendo tento ensinar. Quando caio, olho para cima e levanto depois de chorar. Ainda não achei o grande amor que me disseram que iria encontrar. Nem tive o filho ou plantei a árvore que deveria plantar. Li apenas o livro, mas já é um começo, e quero continuar.

Não espero que a vida me dê grandes papeis. Quero apenas encontrar quem me faça ir até o fim, que me faça ficar, esquecer a partida e aceitar o perdoar. Já esperei tanto, posso mais um pouco, aguento um pouco mais.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O Menino


Um dia o menino saiu de casa. Levava consigo uma pequena sacola, dentro dela algumas peças de roupa. Do futuro, nada esperava naquele fim de tarde. Tinha apenas uma certeza: jamais retornaria.

Havia perdido os pais muito cedo. Sua única referência era um retrato antigo que desde sempre trazia em seu bolso. Logo que ficou órfão, foi levado para casa da avó, com quem viveu até os 11 anos. Tudo era triste desde esse tempo. A avó nunca perdoara o pai do menino. Acusava-o de ter lhe tirado sua filha única. Por ser, também, filho único, herdara sozinho o que pertencera ao pai: o ódio da carrasca. E como tal ela o tratava. Deu graças a Deus no dia em que finalmente morreu. Sem saber se no céu ou no inferno, desejava apenas que a avó se resolvesse com o pai. Nem desconfiava de quem poderia estar certo, sabia apenas que pouco ou nada tinha a ver com tudo aquilo.

Seu destino, depois do enterro da velha, era o abrigo municipal. Não fosse por uma tia surgida não se sabe de onde, teria se juntado aos outros miseráveis esquecidos pela sorte. Antes tivesse sido assim. Desta vez a sorte não apenas lhe esquecera como condenara. Saíra das mãos da avó louca para os domínios de uma tia tirana. Escravizá-lo, concluiu o menino anos depois, era seu único objetivo quando decidira “adotá-lo”. E fez de tudo: foi pedinte, vendedor, flanelinha, trombadinha, engraxate e, quando dava, estudante, afinal o governo até pagava.

Nada disso lhe doía. Para ele sempre fora assim, era aquele o caminho, inquestionável. Se a tia lhe maltratava, lhe chamava de vagabundo e preguiçoso, diferença nenhuma fazia. Ele era apenas um sem nome, sem história, mais um nada.

***

Um dia ele mudou. Levantou cedo, como sempre, e saiu a procura de algo menos insuportável que a presença da tia. Vagando pelas ruas do centro antigo onde crescera, parou em frente a uma vitrine. E ali ficou, por longos minutos, mergulhado em uma reflexão, coisa que antes nunca fizera. Nada se especial havia naquela vitrine, já havia passado por ali centenas de vezes e era sempre a mesma coisa, TVs exibindo em sincronia um programa qualquer. O que viu naquela manhã, porém, foram mais que imagens mudas de um programa matinal. A TV mostrava um homem, com roupas em frangalhos, pele queimada pelo sol, rosto demasiadamente envelhecido para idade que possuía, com uma barba ainda pueril. Fitou seus olhos de desesperanças e só aí se deu conta que a triste figura do tal homem era o reflexo do menino que um dia fora, e que desaparecia ali.

Seguiu sem destino por horas. Buscava descobri como aquilo acontecera, quem era aquele que agora lhe aparecia sem avisar, tão de repente. Era apenas um menino quando saíra de casa pela manhã, não havia como retornar homem, assim, sem explicação. Não havia como continuar subjugado a partir dali. Fez, então, o que havia para ser feito.

Como o dia parecia já querer ir embora, sem que ninguém o percebesse, entrou em casa, pegou as poucas roupas ainda utilizáveis e foi. Não sabia para onde, nem porque ia. Apenas seguia em busca de um algo que pudesse chamar de vida e, quem sabe, felicidade.

Abrigo Noturno


A noite é meu melhor abrigo quando, sem saber porque, sinto uma desesperança se aproximar. É como se com a escuridão que domina o céu me servisse de esconderijo habitado apenas por pequenos pontos luminosos, fieis e silenciosos interlocutores.

Pode ser também que minha afinidade com o anoitecer seja apenas satisfação inconciente por saber que se aproxima o fim de mais um dia. Não que desgoste da vida, ou seja depressivo a ponto de não querer a luz do sol. Apenas os dias tem sido tão difíceis, vejo tanto por fazer e quase ninguém sinceramente disposto a se assumir como timoneiro que duvido do meu desejo de melhorar o mundo.

Não me acredito especial por qualquer motivo que seja. Talvez disfarce bem quando preparo um discurso com boas palavras e ponho no rosto a convicção absoluta naquilo que pronuncio. De fato, duvido de mim mesmo, da vida que há por vir, das intempéries de um amanhã excessivamente desafiante para alguém fatigado por suas incertezas.

Confesso que sinto um desejo imenso de tornar as coisas melhores para os que me cercam. Preciso, até, disso para completar algo ainda incompleto cá dentro. No entanto, as vezes, vejo tanto do que há de ruim no mundo, nos atos das pessoas, nos meus próprio, que desacredito de tudo. É sempre mais do mesmo: disputa de egos, quem “sabe” mais, tem mais, é mais... Por quê?? Ninguém mais crer que menos pode ser melhor, que estar um pouco abaixo pode ser mais agradável!? Já sei, já sei: discurso dos fracos, esse. Coisa de quem nunca será o melhor em nada, um fracassado. É que sempre acreditei que havia algo além do ser, do ter, do papel encenado, da disputa despropositada. Mas já não estou tão certo assim.

Aí, então, fraco eu, não resisto e me permito a diversão. Seliciono os mais vis, desleais e os observo, pretenciosamente. Coisa ilegal o que faço, mas que adoro. Invado a privacidade alheia, sorrateiramente, aos poucos. Claro que existem os mais precavidos que desde muito se cercaram de artefatos de segurança. Até funciona, a dissimulação, o desinteresse calculado, as mensagens antagônicas (só os mais espertos utilizam esse recursso. Os bobos morrer negando – uma confissão!). Só que não há como. E são os detalhes que denunciam, sempre, a verdade oculta por máscaras, palavras, pequenas educações. O real (se existe) não se entrega facilmente. Fica escondido, lançando pedras sem mostrar a mão. Só não invisível. Basta mesmo apenas observar, com paciencia, e por uma fresta, mínima, aquilo indesejado, feio, condenável, se revela profundamente enraizado no Samaritano polido e comportado.

Não deveria abalar-me por isso: assim mesmo, o ser humano. Tendo me habituar a essa idéia. Sem pressa, deixo que aconteça. Acompanhado pela pouca luz, pela paz do vento frio que a noite traz, sinto o peito mais leve. Ainda há muito cá dentro, e não é vazio o que sinto. Apenas conforto, apesar das dores. Quem sabe um dia não mudo de gosto, escrevo sobre o sol, a praia, o dia. Por agora, fico com a noite, mais amena, tranquilizadora, e que me faz sentir seguro.

Não deveria abalar-me por isso: assim mesmo, o ser humano. Tento me habituar a essa idéia. sem pressa, deixo que aconteça. Acompanhado pela pouca luz, pela paz do vento frio que a noite traz, sinto o peito mais leve. Ainda há muito cá dentro, e não é vazio o que sinto. Apenas conforto, apesar das dores. Quem sabe um dia não mudo de gosto, escrevo sobre o sol, a praia, o dia. Por agora, fico com a noite, mais amena, traquilizadora, e que me faz sentir seguro.

Um dia, mudo e escolho a insegurança. Ei de buscar a aventura.