Um dia ele começou a querer mais. Não admitiu isso sequer para ele mesmo. Tinha esse dom: quando queria, podia fingir até para si mesmo. E assim o fez, usando o pretexto de que ela precisava de melhores companhias (ele, claro!), se achegou aos poucos, para conhecê-la melhor e tentar armar um modo de conquista-la. Descobriu muitas coisa. Ela adorava dançar, era louca por sorvete e tinha preferência por vermelho-escuro. Usava um perfume de notas cítricas que, ao que lhe parecia, realçava a vida que havia nela. Adorava roupas. Um dia, como que se confessasse para ele, revelou que todas as manhãs, passava quase uma hora decidindo com se vestiria naquele dia. Em outras circunstância, ele lhe diria, sem titubear, que ela era fútil, mas achou aquilo lindo, e adoraria poder assisti-la todos os dias encenar seu dilema matinal.
Tanto ele se dedicou e insistiu, que ela aceitou, a amizade. Ela agora lhe revelava tudo. E o que não deixava claro, ele subentendia. Era muito bom nisso. Passaram a sair juntos, assistir filmes juntos, até cozinhar na casa dela. E conversavam, interminavelmente, mas nunca concordavam, invariavelmente. Era divertido, para ela, estar com ele. Lhe fazia bem, talvez mais feliz. Para ele era a da dose diária de uma droga em que se viciara. Era dependente dela. E só agora começava a perceber.
Ela viajou. Iria passar um mês na casa dos pais. Tormento para ele. Sabia-se dependente, mas não tanto. Pensava nela a cada instante. Empregou toda sua criatividade para manter uma comunicação diária com ela que, como se precisasse daquilo também, lhe correspondia. Naqueles dias, pode conhecê-la melhor do que nunca. Com a distância ela se mostrava por inteiro, falava de seus segredos, medos e incertezas.
Falou, um dia, também de um amor que tivera tempos antes e que, na visita a casa dos pais, reencontrara. Ela disse não saber se ainda gostava do tal amor, mas que tinha saído com ele e umas amigas de escola. Ele a escutou calado. Sempre usara o silêncio como arma a seu favor. Desta vez, sua mudez o denunciava. Titubeou algumas palavras e desligou. Só voltaram a se falar três dias depois. Ela voltaria no dia seguinte, e queria saber se ele poderia ir lhe esperar. Com poucas palavras e sem vontade própria disse sim e desligou. Já não sabia como conversar com ela.
Aqueles foram dias de dor. Antes, remediado pela presença dela, mesmo que ao telefone, suportava o que lhe corroía por dentro. Agora, depois de se perceber um amigo confidente, e apenas isso, não conseguiria suportar tudo aquilo. Estava certo de que ela nunca o amaria. Confundira as regras. Tudo era culpa sua. Ela nunca o engara, eram amigos, apenas. Agora, não era capaz de suportar aquilo tudo. Decidiu, então, afastar-se dela de uma vez. Seria melhor para os dois. Evitaria dor, para ele, e constrangimento, para ela.
Como prometera, foi espera-la no aeroporto. Havia nos olhos dele uma mistura de sentimentos. Estava feliz, por poder revê-la depois de semanas; triste, por saber da proximidade da separação que ele mesmo estabelecera; sentia medo de não saber como recebê-la, depois de tudo. Somente a presença dela, do outro lado da vidraça, acenando, pode lhe tirar da confusão em que mergulhara.
E como estava linda, ela. Empunhando a imensa bagagem que trazia, dirigiu-se para ele e o abraçou. Perdido no perfume dela, ele, mais que antes e como sempre, soube que a amava. Não disse nada do que havia ensaiado por toda noite, nem a beijou, como secretamente havia desejado. Apenas sorriu e disse que estava com saudades. Ele pegou as malas e a levou até em casa. Ela o convidou para entrar, mas ele recusou, disse estar atrasado para um compromisso. Ela não insistiu. Apenas agradeceu, por tudo, o abraçou novamente e pediu que a visitasse logo: tinha muitas coisas para lhe contar. Ele apenas anuiu.
Seguiu para casa. A noite, em vão tentou dormir. A imagem dela, o perfume, o sorriso, tudo estava gravado nele. Não pode simplesmente deixa isso de lado e esperar pelo momento certo, se é que existiria. Teria de fazer algo, e logo, agora. Só não sabia o que, nem como.
O sol acabava de nascer quando ele, por fim, saiu de casa. Já não lhe importava se pareceria ridículo dizer tudo a ela. Talvez ela até já soubesse, mas para ele era a única opção. Teria de acorda-la, surpreende-la ainda sonolenta. Quem sabe isso até não ajudaria. Ela, ao acordar, estaria desarmada e não teria muito como reagir a ponto de lhe decepcionar.
E foi, bravamente, sem nem mesmo saber porque, em busca de um algo menos insuportável que aquele aperto que trazia no peito. Foi em busca de um fim para aquilo tudo, o ponto final que lhe devolvesse a paz perdida desde o dia em que a conhecera. Não esperava um sim, nem imaginava receber um não. Ele buscava apenas sua vida de volta, fosse com ou sem ela ao lado.